quarta-feira, 18 de abril de 2012

Crítica: Os esquecidos (Los Olvidados, 1950)


“Para mim, Os esquecidos é efetivamente um filme de luta social. Porque eu me creio simplesmente honesto comigo mesmo, eu devo fazer uma obra social. Eu sei que vou neste caminho, mas a partir do social eu não quero fazer filmes de tese. Eu observo as coisas que me emocionam e eu quero transportá-las para a tela, mas sempre com essa espécie de amor que eu tenho pelo instintivo e pelo irracional que pode aparecer em tudo.” – Luiz Buñuel.                                                                        
Amén. Glauber Rocha, o mais fodástico e anarquista cineasta brasileiro afirma em seu livro póstumo (O século do cinema, edit. Cosacnaif) que Buñuel foi o último dos malditos de um cinema que se perdeu na histeria artesanal – sendo que o cinema de Rocha era quase artesanal, pois certamente a frase “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” não tem essência publicitária. Aliás, se formos analisar o cinema de Buñuel, essa é a palavra chave, a essência predominante e desprendida de fórmulas. O diretor sempre gozou em tecer críticas irônicas e maliciosas a igreja católica, como em Viridiana, e a elite burguesa, em O discreto charme da burguesia. Críticas sociais regadas por elementos grotescos subjetivos ou não, essa é a mais forte herança do surrealismo francês do século XIX, e Buñuel, mestre do gênero e influente por natureza aproveitava isso com sabedoria típica dos grandes artistas, que sempre sabem onde pisam enquanto dão a impressão de não saberem. Para ele, tudo valia a pena para conseguir a liberdade do cidadão, sendo a partir de roubos e fazendo o mal, ou traindo o marido aderindo a prostituição em A bela da tarde, ou a liberdade de espírito alcançada em ajudar mendigos e fazer o bem.

É impossível alguém assistir um filme do diretor espanhol mais famoso e idolatrado do mundo sem perceber suas personalidades inseridas num contexto tão particular, e graças ao surrealismo adotado, tão identificável, tão imutável e chocante por excelência – O anjo exterminador. Tem quem diga, em plena era de cópias asquerosas e pornograficamente moralistas dos filmes de Buñuel que esta é a magnum opus do diretor, por justamente conseguir ser uma síntese total da essência Buñuelística: Uma constatação apressada e amadora.

Ok, falar sobre o melhor filme de determinado diretor é fácil demais, e então quem se submete a isso merece não levar a atenção às vezes merecida, mas no caso deste cineasta nascido em 1900 em um “vilarejo espanhol que ainda estava na idade média”, como ele mesmo descreve em sua biografia, é irresistível demais para qualquer fã de Buñuel. Porque é em Os esquecidos onde estão guardados todos os mandamentos do manual ainda por ser escrito de uma das carreiras mais prolíficas do cinema. Dentre os vários fatores que se combinam para tornar Los Olvidados algo original e imortal, um particularmente impressionante é o entrechoque do arcaico com o moderno.  Ao narrar de forma intensa o dia a dia de jovens criminosos no México, é escolhida uma narração aparentemente mais convencional, o elemento surrealista de estranhamento e de desordem intencional, claro, sobretudo a recorrência de imagens agnósticas ao real e irreal. A iluminação? Uma tangente derivada dos clássicos franceses da época, com um tiquinho de expressionismo alemão para aumentar a tal estranheza (cinema este já superado na época, por mais que Fritz Lang negue a existência do expressionismo alemão por si só como um movimento isolado). A partir daí, Buñuel não tinha mais com o que se preocupar, poderia até parar de fazer filmes (Graças a deus ele não parou): Seu lugar na história já estava marcado.


A crueldade e o grotesco das situações impressiona até o mais insensível espectador. Para quem ainda não viu essa obra-prima (espero que essa pessoa tenha um bom motivo para isso), imagine então a cena: Um grupo de delinquentes juvenis apedreja um mendigo errante cego aos pés de um edifício em construção, a luz do dia, simplesmente pelo prazer da violência. Lembrou de Laranja Mecânica? Não negue, não se envergonhe, é completamente natural que grandes obras precisem de bases melhores ainda...  Imagine só, leitor, se Buñuel tivesse seguido os passos escrachadamente humanistas de Rossellini e Visconti! Sua dramaturgia fílmica seria prejudicada para sempre, não em termos de valor, mas em pontos de peculiaridades chave. Clássicos do Neo-Realismo italiano com certeza foram influenciados e influenciaram o cineasta espanhol até um certo ponto, é até um tanto visível isso em A via láctea, mas não há ponto de inverter um centímetro de seus trilhos. Grandes artistas sempre sabem onde pisam, e o resto você já sabe...

Foi com Los olvidados (título original), esse pedaço de perfeição artística que o diretor começou a aprimorar seus zooms de câmera, sua montagem correlativa a imagem que não quer desesperadamente informar pela lógica como as edições cinematográficas de hoje em dia, mas sim embaralhar nossos pontos de vista, através da violência, sobre a sociedade que ele profetizou no meio do século XX a se tornar a sociedade anárquica, sem bases moralistas e a beira de um colapso político do século XXI. Os personagens gatunos, que se aproveitam um do outro: Nesse conceito Buñuel deitou e rolou num tempo esquecido quando o cinema do mundo todo ainda não tinha preconceitos e estava à vontade para mostrar a realidade do jeito que ela é, injusta e na maioria das vezes sem sentido lógico – até parece que o cineasta não iria ser gatuno o bastante para ver nisso a chance de ouro para se auto-elevar na sétima arte.


Uma característica predominante dos filmes de Buñuel: O poder acima do discriminado, como alegoria á velhas ditaduras contra a liberdade.
Aderindo de vez ao espírito histórico dessa análise, sim, o cinema deste senhor que morreu aos 83 anos (com certeza se sentindo inútil quanto a sua arte) viria a sofrer rupturas e mais mutações baseadas em Os esquecidos, subindo o Everest que o próprio diretor ajudou a construir (onde a Nouvelle Vague da França escalou o caminho já trilhado por Buñuel sem dar a devida gratidão), cada vez mais revelando outras obsessões do cineasta além da crítica á burguesia ou religião, mas também ao sexo no último pedaço de arte genuína extraída de sua carreira, Esse obscuro objeto de desejo. Para ele, o sexo assim como a violência juvenil maravilhosamente explorada aqui em Os esquecidos é o prisma que permite enxergar as ambiguidades dentro de cada um, de acordo com um contexto específico. Nem o cinema atual faz isso!

Bem, críticas fílmicas são como radiografias, às vezes didáticas, às vezes são sinopses disfarçadas de análises, e sempre tentam dissecar e regurgitar em palavras o que uma dezena de centenas de imagens por segundo filmadas por câmeras de 50mm mostraram – típica pretensão julgadora de todo escritor. Para isso não acontecer, alguns sugerem, outros convidam, outros se apoiam no que já foi escrito. E quanto a escrever sobre o cinema clássico de Buñuel, tanto os da fase mexicana quanto os do período francês, a qual técnica recorrer?  Simples: Se render á maestria, imitando Almodóvar que se perpetuou aos encantos de Buñuel durante toda sua carreira pop, principalmente em A pele que habito, uma verdadeira e aleatória homenagem moderna cuja idéias dariam orgulho a Buñuel, que assim como seus filmes, e assim como Los Olvidados (mais do que um filme, um tratado quase que definitivo sobre as consequências da miséria (interior e exterior) no ser humano), é filho de uma arte que se destruiu na luta contra velhos sistemas, e apelou para o lado irônico da realidade para se manter de pé como arte sólida. E do que mais as palestras artísticas seriam feitas?

NOTA: 10.

Um comentário:

Alexandre Figueiredo disse...

O filme retrata de forma explícita a falta de perspectiva, o desamparo e a violência de um grupo de garotos frente à desigualdade social nas grandes cidades.Embora rodado no México, aqui o Rio de Janeiro sofre do mesmo mal e me fez refletir se um dia acabará.